E então xingaram o goleiro Aranha de macaco. E então houve comoção nacional. Certo. Essas ofensas ao atleta não impressionam. Não são surpreendentes. Porque é apenas a pontinha do iceberg; a questão é muito mais profunda. São muitos os que se levantaram para gritar contra o absurdo, contra os vilões que ofenderam explicitamente o goleiro, contra os torcedores malvados que em pleno 2014 ainda vomitam esses impropérios. Começou a caça nas redes sociais contra aqueles que xingaram-no de macaco. Certo. Pois eu gostaria de ver essa comoção toda a favor da imensa maioria de negros na faixa da pobreza, da miséria.
Gostaria de ver essa comoção toda contra a naturalidade que é ver tanto moleque preto na rua, tanto moleque preto em condição precária. Gostaria de ver essa comoção toda contra o cotidiano que é não existir médico preto, advogado preto, CEO preto, presidente preto. Gostaria de ver essa comoção toda contra a normalidade que é não existir negro nos programas de TV, nas novelas, nos filmes, nos livros. Gostaria de ver essa comoção toda a favor das religiões de matriz africana, constantemente perseguidas e demonizadas. Gostaria de ver essa comoção toda a favor dos traços naturais do negro, a favor dos nossos cabelos crespos, a favor das nossas vestimentas, a favor dos nossos turbantes. Gostaria de ver. Mesmo.
Reagir com raiva e ódio contra a ofensa direta é bem fácil. E contra o racismo institucional? E contra o racismo já naturalizado, internalizado por todos? O racismo sutil, silencioso e extremamente eficiente que ninguém tem coragem de admitir? É fácil apontar o dedo e tachar o outro de monstro. E você? Quantas piadinhas racistas já fez sem perceber? Quantos moleques pretos de rua você já ignorou? Quantos cabelos crespos você já tripudiou? Quantas mulheres negras você já desrespeitou? Ofensas? Ofensas não são nada. Deixa disso! É só brincadeira. Claro. Então experimenta ser ofendido com o peso de mais de 500 anos de desigualdade, desvalorização, desamparo, violência, morte. Dramático? Faça o teste do pescoço. Faça. Realmente, ofensas não são nada. São apenas a pontinha do iceberg. O produto final de uma violência extrema, silenciosa e sutil que ninguém dá a mínima.
ANÁLISE: Nenhuma punição ao racismo é exagerada. Mas o que a exclusão Grêmio significa?
“Calor da emoção”? Não, é muito pior que isso
Esse cerco todo em torno da torcedora que xingou o goleiro Aranha não significa nada pra mim. Não me sinto nem um pouco feliz em saber que estão transformando a vida dela num verdadeiro inferno. Isso não me diz nada. Isso aí é pra quem quer vingança. Quer sangue por sangue, contra aquilo que considera ser abominável. Mas será que somente ela é racista? Além disso, recentemente o advogado dela se pronunciou: “Aquilo aconteceu no calor do jogo, ela não é uma pessoa racista”.
Não.
Quem faz injúria racial no “calor da emoção” simplesmente falou o que pensa. Simplesmente falou o que lhe é ensinado. A mocinha xingar de macaco não deveria surpreender. Desde cedo é ensinado a todos que é normal preto pedindo esmola, preto maioria nas favelas, preto tomando tiro e morrendo. Ensinam desde cedo que é natural fazer piadinha, falar cabelo duro, chamar de carvão, pauzudo, pelezinho, deixa disso é só brincadeira. Fazer piadinha de escravidão, chutar que é macumba. É tranquilo. E também não surpreende que ninguém queira receber a alcunha de racista. Porque racismo é só quando apontam o dedo e xingam, não é isso? No entanto, abrir mãos dos seus privilégios de viver num sistema racista ninguém quer, né? Lógico.
Será mesmo que todos esses aí que querem estraçalhar a guria estão verdadeiramente cientes do racismo institucional no qual estamos todos imersos? Será que eles acham que acabar com a guria vai adiantar alguma coisa? Acham que vai resolver o problema pelo qual são todos responsáveis?
Por Fabio Kabral*
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